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A figura do médico ou sobre atender de muletas

  • Foto do escritor: Maria Eduarda Mesquita
    Maria Eduarda Mesquita
  • 19 de mar. de 2023
  • 3 min de leitura



“Incapacidade transitória é uma deficiência temporária com duração real ou esperada inferior a seis meses”


Mais uma vez, eu volto a pensar no livro de Renata Ferraz, "A luz no Romper da Aurora", e descubro os inúmeros paralelos entre uma deficiência transitória e permanente. Pois é. Deficiência transitória, que me faz ter dúvidas se posso parar na vaga de cadeirante no shopping quando estou com a cadeira de rodas. Deficiência, essa palavra assustadora que ninguém quer falar em voz alta. Deficiência, a palavra que ninguém quer usar ao se referir a si próprio. Mas eu, que não posso fugir das palavras, digo: tenho uma incapacidade transitória ou uma deficiência temporária.

No livro de Renata, com a progressão da sua doença, ela decide que é hora de passar das muletas para a cadeira de rodas. Então, avisa aos pacientes com antecedência que vai atendê-los na cadeira de rodas. Ao ler, fiquei achando estranho, pensando qual a necessidade de avisar aos pacientes. A própria Renata fica refletindo sobre o porque de sentir que é necessário avisar.


Agora é minha vez. Passados os 30 dias de gesso, chegou a vez da bota ortopédica (famoso robofoot) e a autorização para colocar o pé no chão e dar os primeiros passos. Descobri então que esse é um processo lento de reaprender a andar, e que agora, consigo dar pouco mais de 2-3 passos sem apoio.

Mas amanhã, vou voltar a atender. E me vi então fazendo o mesmo que Renata.


Avisando aos pacientes que posso visita-los em casa e perguntando se tudo bem eu fazer isso de muletas. Mas por que eu fiz isso? Por que não é esperado que o médico tenha alguma incapacidade, seja está transitória ou permanente? Por medo que essa incapacidade física os faça questionar minha capacidade mental?


No fundo, fiquei com medo que eles digam que não querem ser atendidos por uma médica com uma bota ortopédica no pé e andando de muletas. Em que isso interfere no meu trabalho? Posso examinar, auscultar e conversar do mesmo modo, ainda mais conseguindo dar alguns passos sem as muletas. Mas essa não é a figura do médico. A figura do médico é alguém saudável, forte, sem deficiências, sejam essas permanentes ou transitórias.


Deus ou o Universo ou o Acaso me fez ler esse livro e ouvir Renata falar antes de passar por essa cirurgia. Agora, vou reler esse livro, com um outro olhar, pensando que talvez ele tenha me preparado um pouco para os desafios que estou passando agora. Como sempre, o ser humano se tranquiliza ao encontrar outros que entendam o que ele sente e vive. Obrigada Renata, porque ao compartilhar sua história, tantos outros não se sentiram sozinhos.


O que lhes ofereço, meus queridos pacientes, não é exatamente a figura do médico que habita no imaginário comum. Eu lhes ofereço o meu rosto de menina e meus cabelos azuis. Lhes ofereço meu andar com duas muletas e alguns pequenos passos com bota ortopédica. Lhes ofereço meu coração, que bate do mesmo modo. Lhes ofereço minha mente, que não pensa do mesmo modo: agora aprendi ainda mais sobre o que é ser paciente e precisar de ajuda. Lhes ofereço minhas mãos, prontas para examinar ou segurar mãos geladas de medo, para digitar uma anamnese ou abraçar ou enxugar lágrimas.


Eu sei. Não é bem a figura do médico que aparece na televisão. Não lhes garanto perfeição, pois ela não existe. Não lhes garanto infalibilidade, pois isso é mentira. Mas lhes garanto me doar por inteiro a você, meu querido paciente. E espero que isso baste, com ou sem muletas.


 
 
 

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