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Sobre neurodivergência, educação e amadurecimento

  • Foto do escritor: Maria Eduarda Mesquita
    Maria Eduarda Mesquita
  • 4 de mai. de 2024
  • 5 min de leitura

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Caso você seja um querido leitor desconhecido, é preciso dar um contexto nessa crônica: eu sou muito tagarela. Brinco que minha habilidade especial é falar por 12h seguidas, sem nunca ficar sem assunto. Mas não é simplesmente o falar muito, afinal, eu detesto small talk (aquela conversa de elevador, indo de nada pra lugar nenhum). Eu gosto de questionar, refletir, aprender e compartilhar todas essas descobertas. Eu demorei muito a descobrir o que eu iria fazer no vestibular - eu amava de física a história - e a mesma coisa aconteceu na faculdade - queria fazer clínica, pediatria, cirurgia, emergência, e nem vou comentar das subáreas - até que descobri que no fundo, minha paixão é pelo processo de aprender e ensinar.


Depois, entendi que sou neurodivergente. E pra que serve ter um laudo, alguns me perguntaram? O CID no papel, na prática, não muda praticamente nada, talvez apenas o acesso a uma fila preferencial que me ajude em um momento de sobrecarga e ansiedade. O ponto principal é o autoconhecimento que acontece no processo de investigação e que continua depois. Hoje eu sei que o autismo me gera uma certa dificuldade de entender perguntas retóricas ou qual o momento de falar, e por isso as vezes eu respondo o professor quando ele nem esperava por isso. Eu sei que meu pensamento acelerado de TDAH, juntando com as mil conexões que meu perfil cognitivo de altas habilidades/superdotação (AHSD) faz, me gera uma ansia em falar sobre aquela temática, em compartilhar uma associação que fiz com outro tema, em contar um exemplo, as vezes com uma certa impulsividade e sem perceber que naquela hora se esperava silêncio.


Quando eu era mais nova, eu não entendia nada disso. Tão pouco acho que alguma outra pessoa entendesse. Na escola, não foram poucas as vezes que os professores diziam que não iam responder minha pergunta porque aquilo era um aprofundamento que não cabia no programa da aula, e isso iria atrapalhar. Então entendi que eu estava atrapalhando. Não foi uma ou duas vezes que tive algum conflito porque os colegas me liam como arrogante, metida, exibida, e até cheguei a ouvir que eu “gostava de mostrar como eu era mais inteligente que os outros”. Até mesmo na faculdade, em que preceptores falaram que eu era muito “combativa” e tinha que aprender a ficar calada e respeitar a autoridade deles, simplesmente porque eu estava fazendo perguntas e pedindo que explicasse a justificativa de tal decisão. Aí aprendi que eu deveria me esforçar para ficar calada.


Reclamamos que os alunos são passivos, que tem pouco pensamento crítico, que tem pouco interesse em explorar e não sabem estudar sozinhos. Mas foi a própria educação, dentro e fora da sala de aula, que por anos, ensina que o estudante deve ficar calado, obedecer e aceitar. A própria literatura sobre o tema mostra como alunos com altas habilidades são frequentemente tidos como problemáticos ou, para usar um termo mais elegante, “disruptivos”, com uma conotação negativa na palavra, é claro. E isso não acontece apenas com estudantes superdotados.


Na faculdade, eu pouco falava em sala de aula, pouco perguntava e muitas vezes ficava só na sala de corpo presente lendo um livro e estudando por conta própria, ignorando o professor, ou só faltava mesmo - considerando a maioria das aulas, puramente expositivas e passivas. Tirei muitas notas ruins por não me sair bem nas provas de múltipla escolha, sem entender porque eu ensinava o assunto pro colegas, que estudavam pelo meu resumo, e eles tiravam notas maiores que eu. Só depois, ao me envolver com educação, descobri que o problema era o modo com que eu era avaliada, e não, como eu acreditei por muito tempo, que eu era uma aluna mediana ou até menos, e não estava aprendendo nada. Essa questão de não se adaptar aos métodos convencionais explica porque muitas pessoas rejeitam o "diagnóstico" de superdotação: se eu tenho altas habilidades, por que tenho resultados ruins? Agora eu sei que AHSD é sobre o processo cognitivo, e não resultados atingidos.


Além disso, as pessoas falam de Altas Habilidades como algo 100% positivo, mas vem com um peso. Até por isso que existe a brincadeira com o termo em inglês pra isso, “gifted” - algo como presenteado - mas se é um presente, eu posso devolver? Ter Altas Habilidades significa ter uma autocobrança desproporcional: não importa como todo mundo possa me considerar muito inteligente e acima da média, eu ainda acho que meu desempenho está muito abaixo do que deveria. Também significa que quando criança, além dos aspectos do autismo, a própria AHSD levava a dificuldades de socialização: tente falar sobre os livros de Clarice Lispector e Laurentino Gomes no recreio da 6º série, e garanto que não vai fazer sucesso. Tudo isso leva a uma carga de ansiedade importante, relacionada a nunca achar que é bom o suficiente (e sim, o conceito de suficiente é discutível), agravado por avaliações e métodos de ensino inadequados e a ansiedade social.


E caso você, meu querido leitor desconhecido, também não saiba sobre essa atualização, agora estou cursando Mestrado em Ensino na Saúde. Entretanto, algumas coisas são diferentes quando se está num cenário de educação e de mais amadurecimento. Os professores valorizam questionamentos e a incentivam a busca individual por me aprofundar em coisas do meu interesse. Os meus colegas não se prendem num senso de competição que os faria pensar que eu estou falando para mostrar que sou melhor, e eu me sinto feliz quando empolgada, começo a compartilhar a recomendação de um livro que li ou algo que aprendi ou vivenciei, e foram muito acolhedores. Mesmo assim, me vi saindo desse final de semana preocupada e algo ansiosa, pensando se falei muito, na hora errada ou se fui mal interpretada, ou que talvez eu esteja tomando a vez dos outros de falar. Poucas vezes na vida sai de uma aula em que participei ativamente, sem pensar que na próxima vez eu ia me esforçar pra falar menos.


Quando falam que palavras como Autismo, TDAH e Altas Habilidades são rótulos, eu concordo, são mesmo. E dentro de uma palavra como autismo não cabe a imensidão do espectro e todas as particularidades individuais de cada autista. Porém, sempre lembro que rotulados, nós sempre seremos: amostrada, metida, arrogante, chata pra comer, cheia de frescura… Então se é pra ser rotulada, eu prefiro ficar com o rótulo de neurodivergente, que abriu uma porta para eu me entender, descobrir melhores estratégias de adaptação e encontrar outras pessoas que também vivenciam situações parecidas. E através desse entendimento, aprendi a me olhar de forma muito mais positiva.


Para finalizar essa crônica um tanto mais longa que a média, entendo hoje como a educação é a chave de tudo. A psicoeducação, que me ajudou a me entender e assim me autogerir melhor. A educação de professores, que conseguem utilizar melhores métodos de ensino e entender as particularidades dos alunos, considerando que pessoas diferentes aprendem diferente. A educação da sociedade, que lida melhor com as diferenças ao entendê-las. E a educação como a minha maior paixão, seja aprendendo ou ensinando, mergulhando em temas que variados, como música, cobras venenosas, filosofia e o próprio estudo das neurodivergencias. A educação como processo, e não resultado, porque o prazer vem do próprio caminho, em que sou feliz no processo de descobrir e compartilhar.


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