Não, a morte não é azar
- Maria Eduarda Mesquita
- 5 de out. de 2022
- 2 min de leitura
Atualizado: 13 de jul.

“Dra, que azar o seu! Paciente morreu logo no seu plantão!"
É com essa frase, meu querido leitor desconhecido, dita num plantão qualquer, que começo a crônica de hoje. E já começo afirmando, tal qual o título: A morte não é azar. A morte é um evento natural, corriqueiro, apesar de parecer o contrário para uma sociedade que vive como se nunca fosse morrer. Só que morrer é consequência de viver. É o último ato de todo ser vivente.
A morte às vezes causa indignação e raiva. Quando é uma morte violenta ou fruto de acidente (em termos médicos: causas externas). Quando pensamos que há uma vida que poderia ter sido e não foi, porque a ajuda e o cuidado não chegaram a tempo. Quando é uma morte sofrida, miserável, sem a assistência adequada (mais um termo médico para você: mistanásia). Mas já diria Cecily Saunders: "O sofrimento só é intolerável quando ninguém cuida".
Mas não precisa ser assim.
A morte pode ser sutil como o bater de asas de uma borboleta, com a suavidade da última nota do violino em uma música tranquila. A morte pode vir sem nem ao menos um suspiro, com uma delicadeza que, às vezes, nem a vida teve. A morte pode vir no tempo certo, nem antes, nem depois, sem sofrimento.
E é para você que eu escrevo hoje, querido paciente, cujo nome não vou citar, mas que está em meu coração. Escrevo para lhe dizer que eu tive o privilégio de estar no plantão com você. O privilégio de estar lá para receber sua família, para ser ombro para os que choram e conforto para os que sofrem. Porque você podia estar até preparado, mas quem fica sempre gostaria de alguns minutos a mais. Escrevo para lhe dizer que tive o privilégio de acompanhá-lo em sua última jornada, sem dor, sem desespero, sem sofrimento. Cochilando sereno, até que não acordará mais nesse mundo.
Uma querida amiga judia me disse uma vez que essa é a maior das mitzah, os mandamentos dados por Deus. Acompanhar alguém em sua última jornada. É um ato que nunca poderá ser retribuído, porque a pessoa não estará mais aqui. É um ato de amor completamente gratuíto. É um privilégio da minha profissão poder estar tão intimamente ligada à vida, que acompanho a vida até o fim. Como poderia ser um azar?
Meu querido paciente, como nesses muitos dias de internação eu conheci sua fé, rezo por você essa Ave Maria, e peço: A luz eterna dai-lhe Senhor. Que Nossa Mãe te acolha em seus braços hoje. E de lá de cima, reze por mim, para que eu continue seguindo as palavras de Jesus, que amando os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim.
E eu, decidida a cuidar, quero cuidar até o fim.
Até o último bater de asas da borboleta.



Lindo demais! <3