Segunda carta a uma pequena paciente
- Maria Eduarda Mesquita
- há 3 dias
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Pequena,

Exatamente dois anos atrás, também no período de sazonalidade dos vírus respiratórios, eu escrevi uma carta. Na época, eu trabalhava nas UPAs, e você foi a primeira criança que entubei. Na época, você ficou dias e dias na UPA, esperando uma transferência para um hospital pediátrico que deveria ser feita em menos de 24h, mas apesar da nossa ansiedade, não havia vaga em nenhum lugar - a rede estava colapsando, os hospitais bem acima da capacidade máxima e sem recursos suficientes para atender.
Eu fiz o melhor que podia com o que tinha disponível na época, talvez mais até do que o esperado para a UPA, e dias depois soube que você conseguiu ser transferida para uma UTI Pediátrica. Mas naquele dia, naquela carta, eu te fiz uma promessa: eu prometi continuar estudando, aprendendo de como cuidar melhor dos pequenos pacientes.
Hoje, dois anos depois, muitos outros pequenos pacientes graves passaram por minhas mãos, e por vezes, eu trabalho na UTI recebendo os pequenos, recebendo as crianças que estavam nas UPAs, com uma equipe talvez ansiosa pela transferência quanto eu estava naquele dia. Hoje, eu trabalho como instrutora do PALS (Pediatric Advanced Life Support), um curso para ajudar médicos e enfermeiros a cuidarem bem dos pequenos nas emergências pediátricas. Agora, pequena, eu também entrei pra gestão de um hospital pediátrico, um dos que eu esperava ansiosa que aceitasse o pedido de transferência das crianças que estavam na UPA comigo.
Eu sempre digo que o impacto da educação é multiplicador. Eu gero um impacto bom ao cuidar bem das crianças no meu plantão. Mas ao formar uma turma de 24 alunos para cuidarem bem de crianças, eu estou impactando não apenas o meu plantão, mas 24 plantões. E por isso, eu sou completamente apaixonada pelo poder transformador do ensino. E agora, estou descobrindo o impacto transformador da gestão.
Estou descobrindo que ao gerenciar uma escala de médicos plantonistas, eu posso garantir que terão profissionais disponíveis para cuidar. Ao conseguir organizar e fornecer insumos, eu posso garantir que terão Ventiladores Mecânicos e Pontos de Oxigênio disponíveis para pequenos como você, que ficaram esperando um leito com Ventilador. Eu acredito que faço o bem para muitos pequenos no meu plantão, mas ao garantir os recursos humanos e materiais necessários para o cuidado, todos podem fazer o bem em todos os seus plantões. Eu já sabia disso, mas agora senti na pele: é impossível trabalhar na assistência se não houver alguém nos bastidores, a pessoa que está no computador fazendo planilhas coloridas e gerenciando a situação.
Entretanto, nem tudo é belo e motivador. Mesmo dando tudo de mim, muitas coisas estão além do meu poder de decisão. Muitas vezes, mesmo querendo, não temos verba para fazer o que tanto precisamos. Muitas vezes, sou cobrada por coisas que nem estão sob minha responsabilidade. E é por isso que te escrevo essa carta agora, pequena.
Te escrevo para lembrar do porque eu faço isso. Ou melhor, do por quem eu faço isso. É por você, pequena, e por todos os outros pequenos. Me lembro das minhas próprias palavras: não posso mudar o passado, mas posso tentar ser melhor no futuro. E é por vocês, pequenos que partiram e pequenos que estão nesse mundo, que eu me esforço para criar um futuro melhor. Que eu me esforço para ensinar e gerenciar, para prover os conhecimentos e habilidades necessárias aos profissionais, assim como prover os recursos que eles precisam para trabalhar.
Sigo pedindo perdão aos pequenos que não tiveram o cuidado que precisavam, por falta de recursos ou conhecimento, e sigo renovando minha promessa: por vocês, tentarei dar um passo a frente. E se der apenas um passo que seja, já estaremos melhor do que antes. Posso não atingir tudo que sonho, mas usarei o horizonte como meta, para que cada pequeno passo a frente me aproxime mais desse sonho.
Meus pequenos pacientes, eu não lhes garanto o ideal, não lhes garanto a perfeição, pois somos seres humanos falhos em um sistema que também tem falhas. Mas eu lhes prometo, pequenos, que sempre lhes darei o melhor de mim. E espero que toda vez que uma pequena mão agarrar a minha, eu me lembre disso, e continue a trabalhar.
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