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Bem aventurados os desobedientes

  • Foto do escritor: Maria Eduarda Mesquita
    Maria Eduarda Mesquita
  • 15 de nov. de 2022
  • 2 min de leitura

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Quando estudei bioética, meu professor costumava parar na porta da sala de aula para nos dar bom dia e perguntar os quatro princípios da bioética: beneficiência, não-maleficiência, autonomia e justiça. Depois de algumas risadas e os princípios enumerados, entravámos na sala. Lembrei disso quando discutimos a alta dela, entre dilemas e considerações sobre autonomia.


A alta envolvia certos riscos: não era possivel manejar adequadamente todos os seus sintomas e potenciais complicações em casa. Mas ela queria ir pra casa, irredutivelmente. E semana após semana, a mesma discussão: os riscos de ir pra casa versus o desejo da paciente. Sempre a discussão sobre o que nós achavamos melhor e mais seguro, e ainda com os comentários "essa paciente é muito resistente, difícil". E aí eu pergunto: o que significa ser difícil? A que ou a quem ela está resistindo?


Resistir é não ceder diante de um choque, diz o dicionário. E frente a que choque ela resistia? Nós estávamos nos chocando contra ela? Por que a equipe estava indo em uma direção oposta a ela? Quem era resistente: nós ou ela? E depois de muitas reflexões, veio a alta. E veio a chave: Diretiva Antecipada de Vontade (DAV). Não era sobre o que nós queríamos. Era sobre o que era importante para ela. Não era sobre o que nós achávamos que era seguro. Era sobre os valores dela e de sua família.


Autonomia do paciente é um conceito lindo no módulo de humanidades. Mas na prática, quando o paciente tem desejos que vão de encontro ao que nós planejamos para ele, se torna o paciente difícil, resistente, chato. No nosso íntimo, o vemos como desobediente - porque esperamos ser obedecidos, somos formados para decidirmos por ele. E não com ele. Porque para exercer a autonomia, não basta ser informado: é preciso compreender a própria saúde e as opções que se apresentam. E se fazer compreender é bem mais trabalhoso que apenas informar. Tomar as decisões enquanto médicos e apenas dizer ao paciente o que vai acontecer - e infelizmente as vezes nem a informação é dada - é mais fácil. Por outro lado, tenha certeza, dá muito mais trabalho, mais estresse e menos resultado lidar com uma paciente que resiste.


Minha querida paciente, você me ensinou a importância do direito de desobedecer. Você só foi resistente enquanto nossa vontade era uma força que se chocava contra os seus valores e desejos. Quando alinhamos um plano juntos, quando ouvi suas vontades, você se tornou completamente colaborativa - porque estavamos fazendo força juntas, na mesma direção. E com você, mais uma vez, aprendi a autonomia. A autonomia que vai além do que li no código de ética da minha profissão. A autonomia viva e prática, que, acreditem se quiser, é um jeito muito mais fácil e mais prazeroso de fazer medicina.


Bem aventurados os desobedientes, porque garantirão sua autonomia.




1 comentário


Enfermeira Elisabelle
Enfermeira Elisabelle
15 de nov. de 2022

Obrigada querida paciente da equipe de transição de cuidados - UTC, você me ensinou o que é na prática respeitar a autonomia da pessoa cuidada. Só gratidão em meu coração e aprendizados para seguir melhor esta vida!

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