Pode me chamar de você
- Maria Eduarda Mesquita
- 21 de out. de 2022
- 2 min de leitura
Atualizado: 6 de nov. de 2022
"Disso tiramos uma conclusão importante para a arte da escuta. Ela começa pela atitude de renunciar a exercer o poder que nós é atribuído." - Dunker e Thebas
Eu descobri que me foi atribuído poder quando eu me formei, e todos passaram a me chamar de doutora, senhora, como se eu tivesse mudado muito nas poucas horas que se seguiram à meu CRM. Agora, portadora de carimbo, é estranho que eu sente para tomar café com as técnicas, que eu diga que não sei algo e vou pedir orientação da fonoaudióloga ou que quem decide sobre curativos é a enfermeira, e eu seguirei a orientação dela sem interferir. É uma autoridade estranha, em que pacientes e até outros profissionais esperem sempre que as decisões são minhas - ou melhor - que as ordens sejam minhas.
Por isso, aprendi a ser grata pelo meu rosto infantil e cabelos azuis, que fazem as pessoas se espantarem "mas tão novinha, você é médica mesmo?". Tão novinha que não dá pra me chamar de senhora. Tão novinha e tão sem cara de médica que "as vezes a gente até esquece que você é doutora". Ainda bem, porque as melhores conversas são essas, despidas de autoridade, depois que renunciamos ao poder. As melhores conversas começam com um: pode me chamar de você mesmo. Pode falar comigo sem doutora, apenas Eduarda, Duda, Dudinha. É a proximidade sem pedestal que precisamos para nós abrir pra um diálogo verdadeiro.
"Mas você estudou pra isso, ué", eu ouvi uma vez. E fiquei refletindo sobre, até que respondi, não, não foi pra isso. Eu estudei pra ser médica, estudei pra cuidar de gente, estudei pra explorar os mistérios do corpo humano e saber uma parte ínfima do conhecimento disponível no mundo. Estudei pra fazer parte de uma equipe com várias pessoas que estudaram diferentes formas de cuidar, de pensar e de agir, pra que juntos pudéssemos somar nosso ínfimo conhecimento, para que ele seja um pouco menos ínfimo perante a grandeza da vida. Eu não estudei pra mandar, nem pra ter poder, nem pra ter status, nem pra ser chamada de senhora ou doutora. Eu estudei pra segurar a mão de uma paciente assustada e falar: não sei o que vai acontecer ainda, mas sei que seja lá o que aconteça, eu vou estar aqui, junto com você, cuidando e conversando com seus filhos.
Eu estudei para ter conversas abertas, horizontais, compartilhando decisões com a equipe, pacientes e familiares. Eu estudei para escutar profundamente, e continuo estudando para escutar ainda melhor, em conversas que começam com: pode me chamar de você.
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